quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O Adolescente


Depois da criança, há o Adolescente. É a mais bela idade, pelo menos aos meus olhos, a mais perturbadora, a mais perturbada também, e isso dá a ela um encanto a mais.
Não se sabe exatamente quando começa e quando termina. É mais um processo que um estado. Geralmente começa pelos 12/13 anos para as meninas, 13/14 para os meninos (os “pré adolescentes”) e termina lá pelos 20 (os jovens adultos). A puberdade, que se estende por vários anos, serve de ponto de referência ou de bascula, sem que se possa com tudo se reduzir a adolescência a uma simples transformação fisiológica. Mesmo assim, que transformação! O desenvolvimento dos órgãos genitais, o aparecimento dos caracteres sexuais secundário (os seios que se desenvolvem nas meninas, a voz que muda nos meninos,...) a fecundidade que se instala, o crescimento que se acelera, o corpo inteiro que se modifica... Por muito menos já estaríamos desequilibrados. Mas há também a relação com os pais, que já não é a mesma, a relação com os amigos, a relação com a sexualidade, a relação consigo mesmo e com o mundo... Você se questiona, se procura se impõe. É a idade dos contrastes, das contradições, dos conflitos, inclusive internos. Tudo se mistura. Narcisismo e generosidade, exaltação e melancolia, conformismo e revolta, solidão e espírito de grupo, timidez e excentricidade sede de absoluto e reconhecimento... Como a vida é difícil, incerta, hesitante! Você já não é criança, ainda não é adulto. Você não é, torna-se. Acampa provisoriamente no provisório, na impermanência, no inacabado. É a única eternidade verdadeira. Você ainda não sabe disso. Gostaria de parar. Gostaria de avançar. Procura o próprio caminho do jeito que dá, entre a família e os amigos, entre o já não e o ainda não, como em transito no eterno vir-a-ser. Não finge ter chegado. Finge um pouco você mesmo, é bem preciso (se não, como vir a sê-lo?), mas sem acreditar totalmente nisso. Tudo é mais trágico que sério. Com 17 anos não somos frívolos, somos impacientes, estamos cansados. Os pais dizem que é o crescimento, os estudos as noitadas longas de mais... Mas é sobre tudo porque a vida é cansativa, chata, decepcionante, porque ainda nos falta treino ou resignação. Entediamo-nos muito. Estamos cheios de desejos e inquietações. Não somos felizes. E gostamos bastante disso. “A melancolia,” dizia Hugo, “é a felicidade de estar tristes”. Essa felicidade se parece com a adolescência, que é a idade romântica por excelência (a única idade, diria eu, que o romantismo é outra coisa que não mentira ou bobagem). Você odeia a sua família, a sociedade, a terra inteira. Prefere seus sonhos. Prefere seus ideais. É a idade das grandes revoltas, das grandes raivas, dos grandes desesperos (o suicídio é, entre os adolescentes a segunda causa de mortes, logo depois dos acidentes automobilísticos), dos grandes sentimentos, dos grandes ódios. Você se firma opondo-se. É o espírito da adolescência, que sempre nega, e talvez seja o próprio espírito. Azar dos pais. Sorte da humanidade. “Quando são pequenas,” escrevia Oscar Wilde, “as crianças gostam dos pais. Mas tarde julgam-nos. Às vezes elas os perdoam”. A adolescência é a hora desse julgamento; a maturidade desse perdão. Mas não avancemos rápido demais. Primeiro é preciso julgar, condenar, queimar o que adoramos matar o pai, ferir a mãe, partir os ídolos e os simulacros, transgredir os tabus e os interditos. Como eu dizia, não nascemos livres, tornamo-nos livres. A adolescência é o momento  desse tornar-se e dessa libertação. Isso doi. Isso causa medo. Isso faz bem. Você não sabe onde está. Não sabe para onde vai. Sabe menos do que quer do que o que recusa, menos o que espera do que o que teme. Ainda bem que existem os amigos, as amigas, a música, a solidão! Ainda bem que existem o colégio e as férias! Entediamo-nos nos dois. Apendemos nos dois. Ainda bem que existem os livros – para aqueles que ainda lêem – e o cinema! Ainda bem que o tempo passa e dane-se ele nos leva! Não suportamos esperar. Queremos viver no presente e não sabemos. Estamos no começo de tudo, exceto da infância. Somos só um esboço; ainda não sabemos que esse esboço é uma espécie de perfeição, talvez a única que nos será dada, quase sempre aquela que nos parece conosco (acho que é o meu caso: não há idade que melhor me reconheço que nos meus 17 anos), que nunca mais nos deixará de acompanhar, de nos julgar, de nos envergonhar as vezes. Somos imaturos. Exigentes. Estamos cheios de entusiasmo e de severidade. Cheio de rigor e de mais ou menos. Cheios de ingenuidade e de desespero. Somos jovens. Grandes. Enchemos o saco deles. Ai! Como a vida é lenta e como passa depressa!
Tinha escrito primeiro: “Somos jovens. Belos. Enchemos o saco deles” Mas a beleza, mesmo durante a adolescência, não é dada para todos. É mais uma injustiça. Mais um problema. Para muitos, sobretudo perto do fim, a adolescência é a idade ingrata. Para outros, sobretudo no começo, a idade da graça e da poesia... Quase todos, contudo, são mais belos do que acham e do que serão mais tarde. Beleza do diabo ou do anjo, ainda mais impressionante para os adultos, mais atraentes, mais perturbadora, por ser os dois ao mesmo tempo... Mas os adolescentes não sabem disso, ou só sabem por ouvir dizer. A juventude só é um milagre para os velhos.
Lembro-me de uma noite na casa de amigos, muitos anos atrás. A filha deles então com 14 anos, tinha saído, estava fazendo baby-sitting, explicaram-me os pais, na casa de vizinhos... Então, logo após a meia-noite, ei-la que volta para casa, que entra timidamente na sala... Deslumbramento. Fascinação. Era muito mais que desejo e algo bem diferente. Pela primeira e última vez na vida vi um Botticelli vivo diante de mim, e não era nem pintura e nem alucinação! Os anos passaram. A filha dos meus amigos tornou-se uma linda jovem, segura de si e de sua beleza. Mas sem aquele charme quase sobrenatural de seus 14 anos, que ela ignorava e que não voltará.
Aquela beleza era excepcional. O que é bem banal, em contrapartida é o charme da juventude, especialmente o charme da adolescência, com o que ele tem improvisado, desajeitado, desgrenhado, frágil espontâneo... Não dura muito. Lembro-me quando lecionava na universidade das jornadas “Portas Abertas” que organizávamos todo o ano para alunos do terceiro ano do ensino médio em busca de informações... Naquele dia algumas dezenas de colegiais vinham se misturar com os nossos estudantes de primeiro ano, nos corredores e até nas salas de aulas... Não quardo quase nenhuma recordações dos garotos. Mas das moças sim. Como eram diferentes das nossas alunas! Contudo tinham apenas um ou dois anos menos. Mas pareciam mais naturais, mais simples, mais vivas, mais divertidas, mais surpreendentes... Nossas alunas eram moças que fingiam ser mulheres, ou jovens mulheres que ainda não tinha apreendido a sê-lo. Muita seriedade e falta de jeito. Em alguns anos, elas iriam vestir-se melhor, pentear-se melhor, maquiar-se melhor... Muitas, aos 30 anos serão mais belas que aos 20. Mas a maioria, aos 20 ou 22 anos, já tinham perdido aquele encanto efêmero e desengonçado da adolescência, que eu tanto amara quando lecionava no colégio e que reencontraria por um dia anos mais tarde, incrivelmente intacto e novo... Talvez eu esteja apenas expondo minhas predileções aqui (embora, desde a pré-escola, eu só tenha amado mulheres da minha idade). Contudo mesmo que fosse assim, não se pode negar a diferença. Uma moça e uma garota, um jovem e um adolescente não são a mesma coisa. Os primeiros começam a envelhecer. Os segundos ainda não terminaram de crescer completamente. Aqueles estão no mundo dos adultos. Estes se preparam para entrar nele, lentamente, dificilmente, sem acreditar totalmente nele.
Como não teriam um pouco de medo? Gostaríamos de lhes transmitir um pouco de segurança. A verdade é que não sabemos se devemos invejá-los ou sentir pena deles. Então falamos de outra coisa. A adolescência desestimula a conversa e a incita. É a idade dos segredos das confidências, dos sonhos inconfessáveis... Os adultos não tem acesso a eles, e é bom que seja assim. A infância é um milagre e uma catástrofe. A adolescência, um mistério e uma promessa. Mas só será possível cumpri-la mais tarde.

COMTE-SPONVILLE, A. A vida humana. (C. Berliner, trad) São Paulo: Martins Fontes, 2007. pp. 33-38.

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