quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Sobre a Consciência

Viajando um dia, durante nossas guerras civis, meu irmão, senhor de la Brousse, e eu encontramos um fidalgo de boa aparência: era do partido contrário do nosso mas eu não sabia pois ele fingia diferente; e o pior dessas guerras é que as cartas estão tão embaralhadas , vosso inimigo não se distingue de vós por nenhum sinal aparente, nem de linguagem, nem de porte, e tendo sido educado sob as mesmas leis e costumes, e o mesmo clima, que é difícil evitar a confusão e a desordem. Isso me faz temer e encontrar nossas próprias tropas em lugar onde eu não fosse reconhecido por meu nome, e talvez esperar pelo pior. Como me acontecera em outrora, pois num equivoco desses perdi homens e cavalos e mataram-me miseravelmente, entre outros, um pajem, fidalgo italiano, que eu educava com cuidado, e com ele se apagou uma linda infância cheia de grandes esperanças. Mas aquele ali manifestava um pavor tão alucinante, e eu o via quase morto a cada encontro com homens a cavalo e a cada passagem pelas cidades que eram do partido do rei, que por fim adivinhei que eram alarmes que sua consciência lhe dava esse pobre homem pensava que através de sua máscara e das cruzes de seu sobre tudo iriam ler até seu coração suas intenções secretas. De tal forma é maravilhoso o trabalho da consciência: ela nos faz trair, acusar e combater a nós mesmos, e, na ausência de testemunha alheia, nos denuncia contra nós mesmos,

Com uma alma de carrasco, batendo-nos com um chicote invisível1.

Esta história seguinte está na boca das crianças. O peoniano Besso, repreendido por ter, todo alegre, derrubado um ninho de pardais e os matado, dizia estar certo porque aqueles passarinhos não paravam de acusa-lo falsamente do assassínio do próprio pai. Até então esse parricídio fora ocultado e ignorado, mas as fúrias vingadoras da consciência o fizeram ser revelado por aquele mesmo que deveria ser punido. Hesíodo corrige assim o dito de Platão, para quem o castigo segue de bem perto o pecado, pois diz que ele nasce no mesmo instante e junto com o pecado. Esperar pelo castigo é sofrê-lo; merecê-lo é esperar por ele. A maldade fabrica tormentos contra si mesma.

Um mal plano se revela ainda pior para seu próprio autor,2

assim como a vespa pica e machuca o outro, porém mais a si mesma, pois ali perdeu seu ferrão e sua força para sempre;

e ela deixa sua vida na ferida.3

As cantarias têm em si uma secreção que serve de antídoto a seu próprio veneno, por uma posição mútua da natureza. Assim a medida que tomamos prazer no vício, gera-se um prezer contrário na consciência que nos atormenta, velando ou dormindo, com várias ideias dolorosas,

Conta-se, de fato, que muitos, falando em seus sonhos ou delirando em suas febres, acusaram a si mesmo e revelaram segredos muito tempo escondidos. 4

Apolodoro sonhava que se via sendo esfolado pelos citas e, depois, sendo cozido dentro de um caldeirão, e de seu coração dizia, Murmurando: “Sou a causa de todos os seus males”. Nenhum esconderijo serve aos maus dizia Epicuro, porque eles não podem ter certeza de que estão escondidos, já que a consciência os revela a si mesmo.

não conseguir absolver-se em seu fórum íntimo é a primeira punição do culpado. 5

Assim como nos enche de temor, ela também nos enche de segurança e confiança. E posso dizer ter andado, em vária ocasiões arriscadas, com um passo bem mais firme por ter íntima convicção de minha vontade e inocência de meus desígnios.

Cada um, segundo sua consciência, concebe em si mesmo esperança ou temor pelo que cometeu. 6

Há mil exemplos bastariam citar três do mesmo personagem. Cipião, sendo um dia acusado, diante do povo romano, de uma falta importante, em vez de se desculpar ou adular seus juízes disse: “Bem vos ficará querer julgar a cabeça daquele que por meio de quem tendes a autoridade de julgar a todo mundo”. E outra vez, como única resposta às imputações que lhe fazia um tributo do povo, em vez de defender sua causa disse: “Vamos, meus cidadãos, vamos dar graças aos deuses pela vitória que me concederam contra os cartagineses num dia parecido como este”. E pondo-se a andar na frente rumo ao templo, eis que toda assembleia, e até seu acusado, o seguiu. Depois foi quando Petílio, instigado por Catão, foi a Cipião pedir contas do dinheiro por ele manipulado na província de Antióquia. Cipião fora do senado com esse objetivo; mostrou-lhe o livro razão que estava sobre sua toga e disse que aquele livro continha exatamente a receita e a despesa; mas quando lhe pediram que o entregasse ao cartório, ele recusou, dizendo que ele não quer fazer essa vergonha a si mesmo; e com suas mãos, na presença do senado, rasgou-o em pedaços. Não creio que uma alma cauterizada soubesse fingir tamanha segurança: por natureza, esse Tito Lívio, ele tinha o coração orgulhoso demais e acostumado a um destino elevado demais para admitir ser criminoso e rebaixar-se na defesa da própria inocência. As torturas são uma perigosa invenção, e parece ser mais um ensaio de resistência humana que de verdade. E quem consegue suporta-las esconde a verdade, tanto quanto quem não consegue suporta-las. Pois por que a dor me fará confessar o que é verdade, mas do que me forçará a dizer o que não é? E se, ao contrário, quem não fez aquilo que o acusam for bastante resistente para suportar esses sofrimentos, por que não será que o fez, quando lhe propõe como tão bela recompensa a própria vida? Penso que o fundamento dessa invenção vem da importância da força da consciência. Pois parece que ela enfraquece o culpado e ajuda na tortura para fazê-lo confessar sua falta; e, por outro lado, fortalece o inocente contra a tortura. Para falar a verdade é um expediente cheio de incertezas e perigo. O que não se diria, o que não se faria para fugir de dores tão terríveis?

As dores forçam mesmo os inocentes a mentir.7

Donde resulta que quem o juiz pôs sob tortura para não o fazer morrer se fosse inocente acaba morrendo, tanto inocente como torturado. Milhares e milhares deles acusam a si mesmo com falsas confissões! Entre os quais cito Filotas, considerando as circunstâncias do processo que lhe fez Alexandre e o desenrolar de sua tortura. Mas, seja como for, é este (dizem) o menor mal que a fraqueza humana conseguiu inventar: bem desumanamente, porem, e bem inutilmente, a meu ver. Várias nações menos bárbaras nisso do que a grega e a romana, que no entanto assim as chamam, consideram horrível e cruel torturar e esquartejar um homem sobre cuja falta ainda se tem dúvida. Em que ele é responsável pela nossa ignorância? Não somos injustos se, para não o matarmos sem motivo, fizermos a ele pior que matá-lo? A prova de que é assim é que vemos quantas vezes ele prefere morrer sem razão a passar por esse inquérito, mais penoso que o suplício, e que muitas vezes, por sua atrocidade, antecipa o suplício, executando-o. Não sei de onde tiro essa história, mas ela reflete exatamente a consciência de nossa justiça. Uma aldeã acusava um soldado, diante do general de exercito, grande justiceiro, de ter arrancado de seus filhos pequenos o pouco de mingau que lhes restava para se alimentarem, pois aquele exército tudo saqueara. Provas não havia. O general depois de ter instado a mulher a ver bem o que estava dizendo, pois se mentisse seria culpada pela sua acusação, e vendo que ela persistia, mandou abrir o ventre do soldado para esclarecer a verdade do fato: e viu-se que a mulher tinha razão. Condenação investigatória.

1.      1. Juvenal, XIII, 195.
2.      2. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, 266; verso citado por Aulo Gélio, IV, V, I,h° 261 g.
3.      3. Virgílio, Geórgicas, IV, 238.
4.      4.  Lucrécio, V 1158-60.
5.       5.  Juvenal, XIII, 2.
6.      6.  Ovídio, Fastos, I, 485-6.
7.       Público Siro, citado no comentário de Vivès, A cidade de Deus, XIX, VI, p. 234.

      MONTTAIGNE, M. Os ensaios (R. F, d'Aguiar, trad.) São Paulo: Companhia das letras, 2010. pp. 227-233.



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