segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Um Clássico – A República






Almir de Freitas

Muito já se escreveu se falou e se reinventou sobre A República, de Platão (429-347 a.C.), principalmente no que se refere ao mito da caverna. Nele, Sócrates, a quem Platão atribuiu sua filosofia, procura demonstrar a profunda ignorância do homem, escravo de um mundo de aparência, iludido por um jogo de sombra. A alegoria serve, como se sabe, a um discurso politico, não somente a militância aberta para uma nova ordem, mas também a exposição, menos popular de uma teoria das paixões humanas, que teria uma longa história na filosofia e seria decisiva na constituição das bases do pensamento e da ética da civilização ocidental.
É nesse extenso diálogo derradeiro que Sócrates apresenta, por meio de associação com as afecções da alma, ou sentimentos, os regimes com os quais a humanidade, nas suas errâncias entre as sombras, acabaria se deparando nos tempos que viria a oligarquia, por exemplo, reserva o “auto favorecimento”, a timocracia, o “egoísmo”. O pior, em princípios fica-se com a tirania (que Platão conheceu bem durante o chamado Regime dos Trinta), ligado à “cólera”, à “raiva” e à “fúria”. Outra palavra, “destempero” – caberia bem aí. E exemplos também não faltariam ao longo da história.
Mas é evidente que nada é tão simples assim, a começar pelo fato que a vítima concreta da politéia de Platão é a democracia ateniense, que condenou Sócrates a morte por ingestão de cicuta, acusado de “corromper a juventude”. Oriundo de uma família aristocrática de Atenas, que se orgulhava de descender do legislador Sólon, Platão teve ali seu grande momento de desilusão (diríamos assim hoje) com a politica real. Não surpreende que seja ela, a democracia, o mais evidente contraponto de sua utopia, em que prevaleceria a razão, chave da harmonia e da paz social.
De fato Platão era crítico feraz do modelo ateniense de democracia, e é por conta de suas divergências que se inclinaria para a monarquia. Não é casual que em sua república o Estado, sobrepujando o indivíduo, devesse esta na mão do “rei-filósofo”, o único que poderia vislumbrar o “mundo das Ideias” por trás dos vultos enganosos. Hoje, isso nos remete à ditadura, e muito dele há aí de fato. É verdade que as utopias, mesmos as mais modestas, sempre estiveram à mercê de tentações autoritárias. Com a primeira, e talvez a mais ambiciosa, não poderia ser diferente.
A República já foi objeto de inúmeras polêmicas filosóficas e políticas e, quanto mais lida, quanto mais tempo se passava, e a história ensina, mais contradições ela apresenta. Mas há pelo menos uma certeza, mesmo a execução de Sócrates não fez Platão transformar sua maior obra política em mero panfleto contra a ordem, protesto circunstancial, militância “apaixonada”.
No diálogo, o rigor e o apelo à razão são mantidos tanto quanto possível. Assim, não são apenas as virtudes e os defeitos da democracia ateniense que estão em jogo, mas todas as virtudes – as paixões humanas que distorcem e moldam os regimes. Diante disso, talvez não curte simplificar um pouco as coisas e preservar a noção de que a boa governança exige sabedoria, e que esta, por sua vez, não está dissociada do caráter.

Referência Bibliográfica.

PRIMEIRA LEITURA: revista de política – economia - pensamento. São Paulo: Primeira Leitura, n. 6, Agosto de 2002. 122 p. pp.103

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