Almir de Freitas
Muito já se escreveu
se falou e se reinventou sobre A
República, de Platão (429-347 a.C.), principalmente no que se refere ao
mito da caverna. Nele, Sócrates, a quem Platão atribuiu sua filosofia, procura
demonstrar a profunda ignorância do homem, escravo de um mundo de aparência,
iludido por um jogo de sombra. A alegoria serve, como se sabe, a um discurso
politico, não somente a militância aberta para uma nova ordem, mas também a
exposição, menos popular de uma teoria das paixões humanas, que teria uma longa
história na filosofia e seria decisiva na constituição das bases do pensamento
e da ética da civilização ocidental.
É nesse
extenso diálogo derradeiro que Sócrates apresenta, por meio de associação com
as afecções da alma, ou sentimentos, os regimes com os quais a humanidade, nas
suas errâncias entre as sombras, acabaria se deparando nos tempos que viria a
oligarquia, por exemplo, reserva o “auto favorecimento”, a timocracia, o
“egoísmo”. O pior, em princípios fica-se com a tirania (que Platão conheceu bem
durante o chamado Regime dos Trinta), ligado à “cólera”, à “raiva” e à “fúria”.
Outra palavra, “destempero” – caberia bem aí. E exemplos também não faltariam
ao longo da história.
Mas é evidente
que nada é tão simples assim, a começar pelo fato que a vítima concreta da
politéia de Platão é a democracia ateniense, que condenou Sócrates a morte por
ingestão de cicuta, acusado de “corromper a juventude”. Oriundo de uma família
aristocrática de Atenas, que se orgulhava de descender do legislador Sólon,
Platão teve ali seu grande momento de desilusão (diríamos assim hoje) com a
politica real. Não surpreende que seja ela, a democracia, o mais evidente
contraponto de sua utopia, em que prevaleceria a razão, chave da harmonia e da
paz social.
De fato Platão
era crítico feraz do modelo ateniense de democracia, e é por conta de suas
divergências que se inclinaria para a monarquia. Não é casual que em sua
república o Estado, sobrepujando o indivíduo, devesse esta na mão do “rei-filósofo”,
o único que poderia vislumbrar o “mundo das Ideias” por trás dos vultos
enganosos. Hoje, isso nos remete à ditadura, e muito dele há aí de fato. É
verdade que as utopias, mesmos as mais modestas, sempre estiveram à mercê de
tentações autoritárias. Com a primeira, e talvez a mais ambiciosa, não poderia
ser diferente.
A República já foi objeto de inúmeras
polêmicas filosóficas e políticas e, quanto mais lida, quanto mais tempo se passava,
e a história ensina, mais contradições ela apresenta. Mas há pelo menos uma
certeza, mesmo a execução de Sócrates não fez Platão transformar sua maior obra
política em mero panfleto contra a ordem, protesto circunstancial, militância “apaixonada”.
No diálogo, o
rigor e o apelo à razão são mantidos tanto quanto possível. Assim, não são
apenas as virtudes e os defeitos da democracia ateniense que estão em jogo, mas
todas as virtudes – as paixões humanas que distorcem e moldam os regimes. Diante
disso, talvez não curte simplificar um pouco as coisas e preservar a noção de
que a boa governança exige sabedoria, e que esta, por sua vez, não está
dissociada do caráter.
Referência Bibliográfica.
PRIMEIRA LEITURA: revista de política – economia -
pensamento. São Paulo: Primeira Leitura, n. 6, Agosto de 2002. 122 p. pp.103
Nenhum comentário:
Postar um comentário